Há 100 anos…

Até há cerca de 60 a 50 anos atrás, havia uma grande preocupação social e doutrinária com a autosuficiência e o autoabastecimento, especialmente de cereais e produtos hortícolas.

Não havia excessos como há agora, nem de recursos alimentares, nem excessos sociais e mediáticos. Tal como em muitos países subdesenvolvidos actualmente vivem sob o espectro da fome, da falta e da guerra, assim em Portugal se viveu até meados do século passado.

Todas as terras eram cultivadas.

Os meios eram artesanais e o rendimento era fraco. Obrigava a cultivar ainda mais. Mais recentemente alguns avanços da medicina permitiram não perder tantas crianças nos primeiros anos de vida e em idade adulta, aumentando a população de forma mais sustentada.

Muitos não conseguiam um sustento digno e tentavam a sua sorte pela emigração. Os que ficaram, eram obrigados a cultivar todas as terras que pudessem produzir algum rendimento - terrenos eram limpos de pedras, à mão, lavrados e semeados. Com as pedras faziam-se muros e divisões das propriedades. Faziam-se represas para o gado e para regar as terras mais férteis, que se cultivavam com batata e feijão, importantes fontes de amido e proteína.

Nas terras onde nem o cultivo de cereais era possível, pastores guardavam rebanhos de gado debaixo de sobreiros ou azinheiras. E tinham de ser guardados, que na altura ainda havia predadores - lobos, linces e raposas - numa sociedade que penetrava mais em todos os cantinhos da natureza, as colisões entre Homem e predadores eram mais frequentes.

A região da Serra da Estrela não fugiu a esta regra: todas as terras que podiam ser cultivadas, eram cultivadas.

A queda de neve era habitual mesmo a altitudes mais baixas e persistia durante logos períodos nas elevações mais altas da Serra, a água era muito abundante em todo lado. Os fundos dos vales e próximo das povoações, as levadas e sistemas artesanais de rega mantinham as hortas cultivadas. À volta das povoações havia pomares e campos de milho; a maior distância cultivava-se o centeio: “Campo Romão”, “Chão de Celorico” e inúmeros locais com o topónimo ‘Malhada’ ou ‘Malhadinhas’ (locais onde as espigas eram batidas (malhadas) para soltarem o grão) são nomes que ainda atestam o cultivo de cereais a maior altitude.

O vale do Rio Zêzere está profusamente retalhado com muros, não apenas no fundo do vale, mas pelas encostas acima. O próprio planalto tem evidências óbvias do passado de cultivo, com muros e casas de abrigo construídas com muito trabalho de pedras com muitas centenas de quilos. Segundo relatos pessoais, esses abrigos não eram apenas uma protecção contra intempéries. Eram habitados de forma regular e sistemática durante o Verão.

No Vale da Candeeira terão vivido várias dezenas de pessoas, com alternância entre familiares próximos de forma rotativa. No Outono, após as colheitas, o cereal era malhado, o grão levado para a vila às costas de animais de carga e o resto das plantas utilizado para colmar os telhados das casas. Os campos eram abandonados no Outono com a transumância que levava os rebanhos para terras mais baixas fora da Serra.

Antes do abandono do cultivo de cereais no Vale da Candeeira, os Verões terão sido um tempo de grande actividade.

Todo o fundo plano do vale e todas as superfícies planas nas encostas eram semeadas com centeio. A terra era lavrada com animais de tracção, a sementeira e colheita era manual. Os limites da área cultivada eram marcados com muros de pedras retiradas dos terrenos, que assim eram mantidos limpos de pedras e ervas. Fora da extensão plana e cultivada, os terrenos eram também limpos para o gado pastar. Era sempre recolhido de noite por causa da presença frequente de lobos. O lobo só desapareceu da região da Estrela na década de 1970; na Beira Alta e em Trás-os-Montes nunca desapareceu por completo e tem agora protecção.

Com o cultivo das áreas planas e o pastoreio das encostas, todo o vale estava limpo de árvores; arbustos eram ocasionais junto dos muros. Faziam-se queimadas nas urzes para arranjar lenha para aquecimento e para manter os arbustos. O ribeiro estava organizado com levadas, tanques e diques.

Havia caminhos, alguns pavimentados, para passagem entre terrenos, à volta das habitações os espaços estavam limpos e organizados para as tarefas da vida diária. Segundo relatos pessoais, “à noite estávamos cá fora a contar histórias e jogávamos às cartas”.

Os vales vizinhos, o Vale de Covões a norte e o Vale das Candeeirinhas a sul, também eram cultivados e pastados com gado. O planalto a poente do Vale da Candeeira, apesar de plano, já não era cultivado, possivelmente devido à altitude. Até inínio do século passado, o clima era ligeiramente mais fresco e os Invernos mais húmidos que na actualidade. Está perto de 1700 metros de altitude e a época de crescimento terá sido demasiado curta para o centeio. O gado usava muito os prados alpinos e o cervunal e havia ervas para pastar até nos pontos mais altos da Serra.

O pastoreio passava de um vale para outro e a paisagem aberta e ‘limpa’ cobria a serra toda. Onde havia cultivo, faziam-se muros para demarcar os terrenos e naturalmente havia apenas as cearas de centeio; nas encostas e nos pousios, os rebanhos mantinham as ervas e algum arbusto sem expressão na paisagem.

Muitos séculos de pastorícia sem coberto de árvores e as ocasionais queimadas, mantinha o solo límpo e exposto às chuvadas intensas do Outono e Inverno. Há muitos anos, as rochas terão estado menos salientes mas, com o passar do tempo, os solos florestais desapareceram e assim também os solos arenosos, deixando a paisagem de pedregulhos arrendondados a dominar a paisagem. Antigamente sem arbustos.

Com os Invernos mais frescos e com neve abundante, as encostas mais altas mantinham algumas manchas de neve ao longo da Primavera e até o início do Verão.

Por entre campos de centeio, ladeados de muros baixos, passavam caminhos, largos que chegue para a passagem das carroças. Havia sempre alguém a ir ou a voltar, das povoações próximas: levar o leite para baixo, trazer queijo para cima, uns chouriços e um garrafão de vinho. Os caminhos eram muito utilizados, pois havia sempre gente e bens a passar.

Nas encostas, onde os solos não permitiam o cultivo, as pedras maiores eram utilizadas para marcar os limites de terrenos; pedras mais pequenas eram arrumadas de forma alinhada - o interior dos terrenos ficavam descobertos e à volta fazia-se um muro. As encostas estavam repletas de muros. Mais para cima o trabalho não compensava e os espaços entre blocos eram pastados por rebanhos numerosos de cabras e ovelhas. Não deixavam crescer árvores nem arbustos e a paisagem era predominantemente um prado com grandes pedregulhos.

As raízes maiores eram por vezes tiradas da terra e alguns arbustos eram cortados e acendiam-se fogueiras para fazer carvão, para aquecimento e para cozinhar - terá sido dessas fogueiras que o vale recebeu o seu nome.