a ciência de extraír o passado, perfurando as calotes geladas.

‘Ice-coring’

Após algumas experiências mais improvisadas e com valor técnico reduzido chegou-se à conclusão que seria útil prospeccionar o gelo das calotes continentais com o intuito de descobrir se o gelo poderia ser impermeável aos gases e servir de arquivo, mantendo no seu interior o ar ao tempo da sua formação.

Através da perfuração do gelo no interior da calote de gelo da Groenlândia e da Antárctida conseguiu-se extraír cilindros de gelo com 3053 metros e 3405 metros (cortados em secções de 3 metros), respectivamente. Os cilindros têm normalmente 12,2 cm de diâmetro e o cabo que segura a sonda, a cabeça de perfuração e o gelo é de 15 mm e tem 4 quilómetros de comprimento…

O gelo continental é um ‘arquivo’ fantástico: quando a neve cai, incorpora nos espaços intersticiais os gases atmosféricos, os poluentes (vestígios de vulcões e também de ensaios nucleares, p.ex.). Após a sua incorporação e compactação como gelo, essas substâncias ficam guardadas no interior do gelo e podem ser acedidas e medidas em laboratório.

Todos os anos o ciclo de 24 horas de dia no Verão e 24 horas de noite no Inverno faz que seja identificável a sequência anual em todo o núcleo de perfuração.

O gelo sobre a Antárctida, devido ao maior tamanho do continente, e logo maior estabilidade de forma e de escoamento, mantém a sequência de gelo contínua durante cerca de 420.000 anos. No caso da Groenlândia a sequência abrange ‘apenas’ os últimos 125.000 anos.

Com vários estudos que revelam as oscilações da temperatura ao longo do tempo e em várias localidades diferentes, já se tem neste momento uma ideia bastante razoável das oscilações da temperatura, principalmente durante a última idade do gelo; há uma notável correspondência entre as variações (oxigénio-18 e temperatura) em amostras colhidas ao largo da Península Ibérica e do gelo na Groenlândia.

NGRIP-members (2004): High-resolution record of Northern Hemisphere climate extending into the last interglacial period. Nature 2805-10/8/2004 doi:10.1038/nature02805

As razões e os mecanismos responsáveis por tais oscilações é que ainda se está a tentar descobrir.

Imagem: Jay Johnson, Univ. Wisconsin.

Secção do núcleo WAISD. Tem cinza vulcânica com ca. 21000 anos. Imagem: Heidi Koop, Nat.Sci.Found

O oxigénio existe naturalmente em duas versões diferentes.

Existe o oxigénio-16, com 6 protões, 6 neutrões e carga eléctrica 6.

Existe o oxigénio-18, com 6 protões, 8 neutrões e carga eléctrica 6.

Ambas são estáveis do ponto de vista radiológico, nenhuma é radioactiva com tendência a decomposição ao longo do tempo, como é o caso do carbono-14.

Sabe-se que a abundância natural do isótopo oxigénio-18 é de 0,2%

Também existe naturalmente o oxigénio-17, com 6 protões, 7 neutrões e carga eléctrica 6. É igualmente estável, mas a sua abundância é de apenas 0,038% e irrelevante, até para estudos paleo-ambientais.

Como as propriedades químicas do elemento são determinadas pelos protões, os dois isótopos comportam-se exactamente de mesma forma, nas ligações com outros elementos, seja o hidrogénio para fazer H²O (água), seja Silício, para fazer sílica SiO², para exemplificar.

Devido a ter mais dois protões, cada átomo de oxigénio-18 é ligeiramente mais pesado que o oxigénio mais abundante, 16-O.

E a diferença até é significativa: o volume de oxigénio puro que perfaz um quilograma é 0,6998 metros cúbicos. Se enchêssemos o mesmo volume exclusivamente com oxigénio-18 o seu peso seria de 1,1253 kg.

Por o 18-O ser mais pesado, a água feita com esse oxigénio tende a evaporar-se dos oceanos mais devagar - há por isso um ligeiro excesso de 18-O nos oceanos a baixas latitudes, onde há mais evaporação. Por outro lado, o vapor de água com 18-O tende a precipitar-se mais depressa que a água de 16-O.

Estes processos, e outros do âmbito da física e física nuclear, levam a ser possível determinar a temperatura de uma massa de ar, com base na proporção entre o 16-O/18-O existente nos cristais de neve formados.

É facilmente observável que o gelo dos glaciares tem camadas no seu interior. Quando o gelo chega ao mar e quebra em icebergs ou no sopé dos vales onde as línguas de gelo são fundidas pode-se ver as ‘camadas do gelo’

Gelo em arquivo a temperatura constante de -36°C. Foto: Lakewood Ice Core Facility, NSF, Denver, Co.

Uma ‘idade do gelo’ é um período em que todas as regiões da Terra tiveram temperaturas médias significativamente mais baixas do que na actualidade. Uma alteração significativa do clima é que em muitos sítios em vez de caír chuva, cai neve. E alguns sítios a neve cai e durante o Verão não tem tempo de derreter toda.

  • as calotes polares aumentam de extensão e de espessura,

  • as montanhas com línguas de gelo nos vales por vezes aumentam ao ponto do gelo cobrir continuamente toda a cordilheira (caso dos Alpes, as Montanhas Rochosas na Colúmbia Britânica (Canadá) e na Patagónia, p.ex.)

  • muitas montanhas criam glaciares de vale ou de planalto (calote).

A mais recente idade do gelo tem a designação convencionada pelos investigadores suíços e alemães que estudaram a glaciação dos Alpes. No sul e centro da Europa chama-se ‘Glaciação de Würm’, segundo um vale onde se tipificaram os vestígios desta época fria. Noutros locais, o mesmo período frio tem designações ‘locais’ diferentes - Weichsel, no norte da Europa; Wisconsin, na América do Norte, p. ex.

A últina Época fria, o Würm, teve a sua última fase fria há cerca de 22.000 anos. Houve avanços significativos dos glaciares por todo lado, as temperaturas médias eram significativamente mais baixas nessa altura que nos períodos antecedentes e seguintes, as condições ambientais, evidenciadas pelo zonamento da vegetação e dos ecossistemas em geral atingiram o estado mais agreste da ultima idade do gelo.

Devido às quantidades enormes de água que ficam retidas em todas estas massas de gelo, uma parte da água existente nos oceanos fica retida nos glaciares e o nível do mar desce. Tal é a quantidade de gelo criado, que o nivel do mar nos oceanos, na altura de maior agravamento climático, desceu cerca de 180 metros! — é muita água! (ou . . . muito gelo…)

Esta descida do mar descobriu vastas áreas. Como a descida do mar é um processo gradual e lento e como o agravamento do clima durou vários milhares de anos, todas estas terras descobertas terão tido tempo para ser colonizadas por vegetação zonal.

Alguns locais onde actualmente existe mar e na fase de maior agravamento climático da última época do gelo a descida do mar descobriu áreas de dimensão significativa, foram

o Mar de Arafura e de Timor que ligou a Austrália à Nova Guiné,

a ligação terrestre da maioria do arquipélago Sueste Asiático ao continente (actual Vietname e Tailândia até Bornéu, Java e Bali) - chama-se Sundaland a esta terra.

a ligação terrestre entre a Ásia e a América, no Norte entre o actual Alaska e a Península de Chukchi na Sibéria oriental. Terá sido por esta ligação terrestre que as Américas foram colonizadas. Esta região de terra descoberta designa-se por Beringia, por ser o actual Mar de Bering.

a ligação entre a actual ilha da Grã-Bretanha e a Alemanha e Dinamarca através do Doggerland. Foi a primeira área onde se descobriu ter existido ‘terra firme’ agora submersa, por pescadores terem apanhado bocados de árvores e utensílios de caça nas suas redes; foi um dos impulsionadores para sistematizar as oscilações do nível do mar e as relacionar com as alterações climáticas durante a idade do gelo.

Muitos povamentos humanos e vestígios de culturas desse tempo perderam-se seguramente por o mar ter voltado a subir, inundando grutas, cavernas e outros povoados humanos à beira-mar.

Também muitas espécies de plantas e animais, entretanto desenvolvidos nessas terras terão desaparecido.

Sabe-se portanto que a última idade do gelo foi antecedida por um intervalo quente, designado por ‘Eem’ (ou Eemiano), tal como o período em que vivemos agora, o Holocénico; o anterior até foi mais quente que na actualidade. Tanto mais quente que a Groenlândia terá ficado muito mais liberta de gelo que na actualidade; sem desaparecer por completo, mas quase.

O impulso climático para iniciar a transição do período quente para a idade de gelo foi no hemisfério Norte, há 120 mil anos - começou vários milhares de anos antes na Groenlândia que na Antárctida: uma descida regular de temperatura que levou o clima de pleno intervalo quente para glaciário pleno, em menos de 4 mil anos.

Podemos dividir estes últimos 110 mil anos em fases:

  • primeira fase (de 110 mil anos a 80 mil anos) - clima frio e relativamente estável a longo prazo.

  • segunda fase (de 70 mil anos a 60 mil anos) - clima muito frio e estável; é significativo que as temperaturas na Groenlândia estabilizaram em valores quase iguais às da Antárctida.

  • terceira fase (de 58 mil anos a 18 mil anos) - depois de um ligeiro aquecimento o clima torna-se menos estável a longo prazo, e com tendência para arrefecer. Tornou-se novamente muito frio. Há 30 mil anos e até cerca de 22 mil as temperaturas da Groenlândia (hemisfério Norte, em geral) estiveram periodicamente muito semelhantes às da Antárctida!

Gráfico comparativo da análise térmica das perfurações NGRIP (North GReenland Icecore Project) - traço preto, e o projecto Europeu ‘EPICA’ (European Project for Ice Coring in Antarctica) - traço azul.

Ordenada: em dezenas de milhar de anos, abcissa: temperatura média anual local.

Referência da imagem:

William Connolley e NGRIP Members, Nature 431, 147 - 151 (09 September 2004).

Nota-se a maior estabilidade térmica da massa continental antárctica, e um desfasamento ocasional entre o hemisfério Norte e Sul.

A tendência do clima é global.

Entre os 18 mil anos e há 12 mil inicia-se o aquecimento - um período de clima bastante instavel a longo prazo, com grandes oscilações de temperatura e de humidade. Iniciou-se a fusão e o desaparecimento dos escudos contimentais de gelo na América do Norte e na Escandinávia e consequente libertação de água-doce para os oceanos e subida rápida do nível dos oceanos (~15mm/ano).

Há fases mais amenas, com temperaturas quase iguais às da actualidade, interrompido por breves períodos de recrudescimento ambiental com arrefecimento considerável.

Um dos factos mais surpreendentes que estas análises às temperaturas do passado trouxeram ao conhecimento, foi a velocidade do aquecimento na transição de uma época fria para um época menos fria, amena ou quente. Já foi re-verificado em vários momentos ao longo das sequências retiradas do gelo e não é um artefacto ou erro de medição ou interpretação dos dados. É real.

No gráfico acima a linha mais fina mostra a temperatura, no gelo da Groenlândia, derivada do diferencial entre os dois isótopos de oxigénio (a linha mais grossa resulta de uma filtragem por períodos onde se retira os dados extremos e apresenta a melhor aproximação ao valor médio - uma espécie de ‘média flutuante’). À esquerda do gráfico o passado a 17000 anos, à direita, a 10000.

Aos 17 mil anos já tinha ocorrido um aquecimento significativo e gradual desde o período de maior arrefecimento, há ca. 22 mil anos. O período quente iniciado há 14.692 anos (Rasmussen, et. al, 2006) e que terminou há 14.200 anos está identificado há muito nas sequências analisadas das turfeiras e mares interiores em vários pontos da Europa e posteriormente em outras regiões. Tem a designação convencionada de Bølling, segundo uma localidade dinamarquesa onde foi inicialmente verificado este período quente no fim da última idade do gelo.

Datação exacta segundo

Rasmussen, S., et al. (2006): A new Greenland ice core chronology for the last glacial termination. Joun. Geophys. Res. Vol 111, D6.

O aquecimento que se verificou há 14700 anos foi de ~4,5°C em cerca de 60 anos! Considera-se que este momento marca ‘o fim da última idade do gelo’…

Os intervalos frios que ocorreram neste período instável, ainda que curtos, são significativos. Ainda havia muitos vestígios da glaciação global recente, muitos glaciares extensos ainda a recuar, niveis dos oceanos ainda baixos e a circulação na atmosfera e sobretudo nos oceanos ainda não teriam padrões definidos e estáveis. As comunidades vegetais, principalmente nas vastas áreas recentemente descobertas pelos gelos continentais ainda estariam num desequilíbrio dinâmico, com plantas pioneiras a ser rapidamente substituidas por ‘invasoras’ de climas amenos.

Há 11.703 anos verificou-se um período semelhante, com aquecimento rápido e acentuado.

Dryas octopetala. Imagem: wikimedia.org

Estes períodos frios têm o nome de um género de plantas pioneiras nas zonas do Norte recentemente descobertas de gelo. Tornam-se mais comuns nos períodos de regressão climática, durante o desaparecimento das florestas recém-estabelecidas. A espécie que era muito frequente no Norte da Europa nessa época era Dryas octopetala e às fases frias durante o período instável da transição do pleno glaciário para a época quente da actualidade chamam-se Dryas.

O período frio que ocorreu no intervalo de 12.900 a 11.700 anos é especialmente significativo. Foi a regressão climática mais duradoura e mais intensa. Identifica-se em quase todos os locais de pesquisa dos climas antigos, especialmente no Hemisfério Norte. Designa-se por Dryas recente - é seguido pelo período quente da actualidade, o Holocénico. Como algumas outras transições de aquecimento, também o final do Dryas Recente é um aquecimento acentuado de 2 ou 3 graus C em algumas décadas.

De há 12 mil anos (11.703 anos, segundo Rasmussen e outros, 2006) até hoje, estamos num período quente, interglaciário, um dos períodos termicamente mais estáveis dos últimos cem mil anos!