
o Vale da Candeeira foi abandonado
Nos últimos 60 anos, o cultivo do centeio desapareceu do Vale da Candeeira
Como chegámos ao estado actual?
Dentro de poucos anos, o Vale da Candeeira será um matagal impenetrável de arbustos espinhosos.
Há 100 anos atrás, o Vale da Candeeira era todo cultivado. Todas as superfícies planas do vale eram campos de centeio. O resto do vale era todo pasto para ovelhas e cabras.
A partir de meados do século passado a exploração do vale entrou em declínio e actualmente está completamente abandonado.
Que futuro para o matagal de urzes?
A expansão da civilização humana aconteceu geralmente de forma aleatória e na obscuridade do conhecimento sistematizado. Como a própria Natureza avança por tentativa e erro, e segundo o princípio da sobrevivência do mais apto, assim a sociedade humana avançou, durante milhares de anos: descobrimos o fogo por acaso, descobrimos a possibilidade de cultivar cereais por acaso, descobrimos a metalurgia por acaso. Após descobertas, foram aperfeiçoados de forma deliberada e consciente, mas as suas descobertas foram fruto do acaso.
Apenas com o desenvolvimento ‘do pensamento’ pelos gregos e das bases da engenharia pelos romanos é que houve um direccionamento do desenvolvimento social. Só a partir dessa altura é que o conhecimento começou a ser registado, transmitido e acumulado de geração em geração de modo a possibilitar um avanço social propositado. A invenção da impensa, por Gutenberg, foi provavelmente o engenho mais significativa da história, por permitir a multiplicação rápida do conhecimento.
Os avanços do conhecimento permitiram inicialmente a expansão da capacidade de sustento (alimento) e assim, o aumento da população humana e da sua exploração do planeta. Recentemente esses avanços tornaram-se mais sofisticados, com alguma consciência ambiental e capacidade manipuladora dos organismos, do ambiente e do próprio.
A expansão da capacidade de sustento reflectiu-se, no caso particular do Vale da Candeeira, no seu cultivo com cereais. Depois do estabelecimento da identidade nacional e a estabilização dos limites administrativos, os meios de produção foram encaminhados da defesa para a melhoria da qualidade de vida e de expansão populacional. Regista-se um aumento na quantidade de pólen de centeio, há cerca de 750 anos atrás, coincidente com a expansão agrícola medieval; o 6º Rei de Portugal, D. Diniz, foi aclamado em 1279 e tinha o cognome ‘o Rei Lavrador’, precisamente pelo impulso que deu ao reino pelo incentivo da actividade agrícola.
Nesta época desapareceram os últimos produtores de pólen arbóreo (alguns vidoeiros que terão ainda permanecido na proximidade imediata da Lagoa da Candeeira). Conforme se pode determinar pela evolução da concentração do pólen, extraído das turfeiras da Serra da Estrela (ver gráfico simplifacado aqui), a partir desta época, o pólen de espécies arbóreas é de pinheiro e de oliveira, logo deriva de cultivo destas espécies fora do próprio Vale da Candeeira.
O aumento da quantidade de pólen de pinheiro é gradual mas acentuado. A necessidade de madeira aumentou, na utilização naval, para utensílios agrícolas e carvão para aquecimento. O pinheiro era a árvore preferida para plantar, principalmente devido ao seu crescimento mais rápido que as folhosas, e por não ter estatuto de protecção, como é o caso do sobreiro.
Verifica-se também outro aumento na quantidade de pólen de cereais: há cerca de 250 anos atrás, coincidente com a época pombalina e a revolução liberal. A exploração cerealífera do Vale da Candeeira passou a ser generalizada e sistemática. As urzes diminuíram a sua produção de pólem e a sua cobertura do solo. É o resultado da pastorícia a ocupar as encostas mais inclinadas do vale. Sem uma cobertura arbórea, esta utilização intensiva levou a uma perda dos solos florestais irreversível: as encostas terão estado quase totalmente cobertas por floresta, que pelo seu abate foi substituida espontaneamente por urzes e giestas. Com a agricultura e queimadas para a pastorícia, os solos descobertos foram levados pelas chuvas, deixando apenas ficar as rochas que cobrem as encostas, tal como as conhecemos na actualidade.
Um dos resultados positivos da industrialização foi um aumento da capacidade de produção de bens e, em consequência directa disso, um aumento significativo da riqueza, melhores condições de saúde, mais educação e mais disponibilidade para investigar, desenvolver e avançar.
O aumento da produção de bens e da riqueza teve como outra consequência um aumento da produção agrícola, pelo aperfeiçoamento dos meios de produção, o aperfeiçoamento das plantas utilizadas e a optimização das culturas ao local de produção (esta última motivada, pelo menos em parte, pela globalização dos mercados: cada produto pode ser cultivado onde cresce melhor e enviado para um local de consumo diferente).
Tudo isto levou à possibilidade de muitas populações se abastecerem de produtos agrícolas semi-manufaturados e o Vale da Candeeira deixar de ser cultivado. Durante as décadas de 1950 e 60 a exploração generalizada de cereais foi abandonada; ainda foi explorado com gado bovino até inícios da década de 1990 após o que apenas pequenos rebanhos de gado caprino utilizam o Vale da Candeeira e de forma ocasional ou esporádica. De salientar que a forma de pastar do gado bovino e caprino é bastante diferente, sendo que o gado bovino é mais eficaz a manter prados limpos de arbustos, enquanto cabras e ovelhas são mais selectivas e permitem a ocupação dos prados por arbustos.
A ausência de pastoreio por gado bovino há algumas décadas está a levar ao início da colonização do fundo do vale por giestas que em algumas áreas estão a dominar por completo o cervunal. As suas raízes e biomassa depositada eleva ligeiramente a superfície do solo - aliada à descida da água freática resultado do clima mais seco e o entalhar do Ribeiro da Candeeira - poucos metros atrás das giestas as urzes estão a entrar no fundo plano!
Depois da exploração agrícola do vale ter sido abandonada, o vale ficou deixado ao aproveitamento pelas plantas selvagens - as mais numerosas e mais bem adaptadas às condições existentes vão se dispersar e ocupar o espaço. Com o passar do tempo, outras formas arbustivas poderão ocupar o espaço, mas dada a pré-condição de o solo já estar ocupado por uma comunidade arbustiva densa, é provável que não chegue a instalar-se uma comunidade florestal.
Essa ideia é apoiada por Connor, et.al. num trabalho sobre os fogos naturais na Serra que elabora sobre a questão da recuperação da floresta após incêndios.
Connor, S.E., Araújo, J., v.d.Knaap, W., v.Leeuwen, J., (2012): A long-term perspective on biomass burning in the Serra da Estrela, Portugal. Quat. Science Rev. 55, 114-124. Elsevier.
Esta comunidade arbustiva é muito pobre quando comparada com a comunidade florestal. A biomassa é muito inferior e há muito menos queda de folhagem e logo menos formação de solo e menos absorção de humidade no solo e mais propenso à escorrência superficial, à formação de sulcos e à erosão. Do ponto de vista ecológico verificamos a falta de diversidade de espécies e falta de estratificação. Por esse motivo a diversidade animal é muito mais reduzida. Por o solo ser mais seco, esta é também uma comunidade vegetal muito mais combustível e facilmente sujeita e consumida pelo fogo.
A esta sequência de plantas que ocupam um determinado local ao longo do tempo, de forma espontânea e em funcão das condições ambientais e do solo, chama-se uma sucessão ecológica. A comunidade vegetal final de uma sucessão designa-se por comunidade climácica.
Os conceitos da sucessão e da comunidade climácica estão explicados de forma mais elaborada nesta página.
A floresta que já existiu na Serra da Estrela pode ser instalada no Vale da Candeeira. Teoricamente pode ser instalada em qualquer sítio da Serra, mas os solos são muito finos e pobres, a interferência humana é demasiado intensa em quase todo lado e muitos vales são demasiado pequenos para ‘ganharem massa crítica’ para que se consiga iniciar um crescimento sustentado.
No Vale da Candeeira é possível interromper a sucessão da comunidade arbustiva.
Isso é possível em qualquer momento da sucessão.
Era mais fácil há 50 anos atrás, quando as encostas estavam quase limpas de giestas e urzes pelo pastoreio, o clima era ligeiramente mais húmido e haveria mais disponibilidade de água no solo.
Era muito mais fácil há 1000 anos atrás, antes de se terem perdido vários metros de espessura de solos florestais, não se necessitando de abrir covas para plantar - qualquer sítio onde se enfiasse um rebento de árvore, crescia sem qualquer apoio.
Daqui a 50 anos será muito mais difícil. O matagal de urze terá colonizado por completo o vale, será impenetrável; sem pastores nem rebanhos a manter o pisoteio e as passagens, os caminhos terão desaparecido por completo. A tendência para a secura do clima, sem qualquer represa no ribeiro, tê-lo-à transformado numa linha de água efêmera, num sulco coberto por giestas e raízes.
Daqui a 1000 anos? A manter-se a tendência de exploração destrutiva por mil anos, sem qualquer mudança de atitude… Possivelmente haverá o oásis de palmeiras do Zêzere entre a actual Covilhã e Fundão e o oásis do Mondego na actual barragem da Aguieira e em Xinzo de Lima, na Galiza… Árvores… só na encosta norte das montanhas das Astúrias e dos Pirenéus. O resto da Península Ibérica estará transformada numa extensão para Norte do Deserto do Saára - tal como o resto da região mediterrânica…
Mas acreditamos que não será mesmo possível manter a tendência de exploração ambiental actual - tirar e tirar, sem repôr nem devolver.
Quanto mais depressa mudarmos de atitude e alterarmos o rumo da evolução, menos trabalhosa será a recuperação!