
Trabalho faseado.
As represas de água no Vale da Candeeira.
O caso prático.
Trabalho faseado
A reconfiguração de um sistema tão dinâmico como é um sistema hídrico é necessariamente um trabalho de elevada complexidade. Tem de ser dividido em tarefas exequíveis.
A água é um líquido com várias propriedades ‘estranhas’ (conforme revisto numa página específica sobre este tema, aqui). Para além das mencionadas, tem também a capacidade dos líquidos ‘normais’, de preencher todos os espaços intersticiais (‘microporos’) entre as partículas dos sólidos, por ser polarizada adere muito bem a esses sólidos e transporta iões e minerais (nutrientes) tal como não é comprimível/compactável no ambiente de temperatura e pressão habituais.
No trabalho com água há que ter em conta as suas propriedades, o nivelamento e a sua circulação entre o meio superficial e o freático.
Teremos de ceder aos seus caprichos e não contrariar ‘a vontade’ da água. Num vale isolado, sem meios mecanizados a água é o melhor aliado e um péssimo adversário - principalmente por haver pouca e querermos precisamente armazená-la dentro do vale.
Segurar a água, num tempo cada vez mais seco.
O castor é um herbívoro aquático, roedor, sem qualquer perigosidade para outros animais nem para nós. Constrói a sua ‘casa’ de troncos, ramos e galhos, num lago. Faz a entrada para a casa abaixo da superfície para evitar ‘visitas’; a toca está sempre no interior, acima da superfície da água. Para manter o nivel da água constante, constrói também barragens de modo que pode habitar nos rios que assim transforma em sistemas de lagos ou pântanos.
Esse trabalho incansável é essencial para a estabilidade do sistema hídrico: os pequenos cursos de água acumulam imensa água nas suas cabeceiras que por isso tinham muito mais vegetação que segurava os solos e recarregava os aquíferos, evitando assim cheias e mantendo água nos rios pela Primavera e até no Verão!
Até alguns séculos haviam castores em Portugal e na Europa. Em Portugal foi extinto na idade média.
Todo este equilíbrio foi desfeito com o extermínio do castor.
Os sitemas húmidos e pantanosos desapareceram e os cursos de água são agora meros canais de transporte de água, em cabeceiras secas, rochosas e desprovidas de solo e vegetação. Os cursos de água, pela sua torrencialidade (=muita água repentina e depois, seca) tendem a concentrar o seu escoamento e com essa concentração aumenta a capacidade erosiva que concentra ainda mais o escoamento - isto resulta no entalhar dos ribeiros e a secagem dos leitos de cheia.
Na ausência de castores para construír e manter as suas represas, utilizaremos o modelo da construção de imitações de represas de castores. Beaver Dam Analogues, é o termo técnico, mais conhecidas sobre a abreviatura ‘BDA’, têm sido utilizadas nos Estados Unidos, com resultados muito positivos na recuperação de linhas de água, onde a ausência de castores desestabilizou os seus sistemas de drenagem e se tornaram linhas de água entalhadas.
Pollock, M., Weaton, J., et. al. (2014): Using Beaver Dams to restore incised stream Ecosystems. Bioscience XX, 1-12. Oxford University Press, Ed.
Há uma extensa bibliografia sobre o tema, esta obra é apenas um exemplo, de como as represas são consideradas uma ‘imitação do original’ dos castores, e como os resultados dessas imitações são realmente positivos.
O processo de construção de represas, apesar de não envolver meios mecanizados na sua construção, é um processo complexo. Apoia-se na quantidade e não na qualidade, e na interligação entre as represas e a hidrologia, para se tornar eficaz.
A observação das diferenças entre as zonas húmidas onde há castores e onde não há foi o ponto de partida para este paradigma da recuperação de cursos de água. O reconhecimento científico de como a criação de represas e uma área húmida são essenciais para o equilíbrio ecológico, hidrológico e erosivo de vastas áreas de cabeceiras de drenagem.
A sistematização do método ficou a cargo dos investigadores que inicialmente o implementaram:
Wheaton J.M., Bennett S.N., Bouwes, N., Maestas J.D. and Shahverdian S.M. (Editors). 2019. Low-Tech Process-Based Restoration of Riverscapes: Design Manual. Version 1.0. Utah State University Restoration Consortium. Logan, Utah.
Disponível em:
http://lowtechpbr.restoration.usu.edu/manual
(‘Low-Tech Process-based Restoration of Riverscapes’ significa, em português, ‘Recuperação de cursos de água baseado no Processo Hidráulico, sem utilização de meios mecânicos’.)
Este método cumpre várias condições essenciais para que possa ser implementado como parte do projecto Candeeira Verde:
não necessita de meios tecnológicos sofisticados no seu planeamento,
não necessita de meios mecanizados ou motorizados na sua implementação/construção,
se for eficaz, pode reter grandes quantidades de água no vale, que beneficiará as plantas e animais existentes,
se for eficaz, a subida da água freática poderá ser o ‘motor’ da recuperação ecológica do vale,
pode significar a devolução do ecossistema ripícola/lacustre que comprovadamente já existiu no vale.
A ineficácia e eventual abandono do método não deixa estragos ou construções residuais na paisagem.
A recuperação do Vale da Candeeira não ficaria completa, sem a recuperação do sistema húmido no fundo do vale. Esta é certamente a melhor maneira de se conseguir essa recuperação. Dada a situação isolada do vale, será provavelmente a única maneira de se conseguir.
Um dos alicerces do método de recuperação de linhas-de-água entalhadas acima referido, é precisamente a sua interligação com a hidrodinâmica interna do vale intervencionado - daí a designação ‘process-based’.
A versatilidade das represas, tal como as que fazem os castores, é a sua grande vantagem. É também essa a razão por que referimos, que o método se apoia na quantidade e não na qualidade. Fazer várias represas, para depois ver quais se aguentam, quais se justificam e quais são destruídas pela corrente ou acabam por não cumprir utilidade.
À direita está uma imagem do ribeiro da Candeeira, em Abril de 2023. Antes de qualquer intervenção. Fotografia tirada na ‘Nave de Cima’ em direcção a oriente/jusante. A corrente da água afasta-se do observador, portanto.
No centro esquerdo da imagem vê-se o fundo plano do vale, na parte central vê-se o entalhe do leito e o ribeiro, que na Primavera ainda preenche o fundo do leito. Está marcado na imagem o nível da água nas cheias (H).
Note-se a ausência total de vegetação ripícola - as margens do leito estão ocupadas por gramíneas e giestas.
Abaixo está uma representação esquematizada do Ribeiro da Candeeira, em corte perpendicular à corrente da água. Estão assinalados os niveis da água correspontentes ao nivel da ‘cheia anual’ (letra H), o nivel normal (letra N) que tende a diminuir ao longo do Verão até o nivel de estiagem (letra L).
Segundo testemunhos presenciais, até meados do século passado, as cheias atingiam regularmente a maior parte do fundo do vale. Actualmente isso não acontece; as cheias recorrentes no Inverno atingem o nivel H, assinalado também na fotografia.
Durante a Primavera o caudal reduz-se significativamente e no Verão o ribeiro fica reduzido a uma sequência de poças de água. Parece ser água subterrânea/freática e não água superficial estagnada. Esta afirmação necessita comprovação técnica, mas há vários factos que apontam nesse sentido: as poças mantêm-se frescas, não aquecem ao longo do Verão; a água mantém-se límpida, sem acumulação de algas; em medição nos prados adjacentes, com vara enterrada, a profundidade de humedecimento é ligeiramente superior ao fundo do leito / das poças.
A água freática parece estar a cerca de dois metros de profundidade, próximo do ribeiro. Certamente essa profundidade aumentará com maior distância horizontal do curso de água, mas aguarda medição.
A instalação das represas deverá ser colocada de forma estratégica, de modo juntar o maior volume de água possível, no mais longo percurso de ribeiro possível. Imediatamente acima de rápidos ou desníveis do leito e imediatamente abaixo de confluências entre canais de escoamento.
Após observação no terreno serão identificados locais aptos para instalação de represas, que correspondam aos critérios acima indicados e onde o substrato do leito seja propício a enterrar as estacas com que se inicia a instalação.
Serão em simultâneo esses locais georreferênciados e cartografados em sistema cartográfico aberto (Google Earth ou Q-gis).
No mesmo diagrama da imagem anterior, com referência ao leito de cheias do Ribeiro da Candeeira, assinalamos aqui, também de forma esquematizada, os niveis propostos para as primeiras fases de implementação das represas.
I - uma primeira fase de prospecção de locais e de melhor entendimento e sensibilidade hidrológica.
Nesta primeira fase, a instalação de represas estará focada na adaptação ao trabalho e à metodologia das BDA’s; serão represas mais pequenas com a finalidade de aferir a reacção do sistema hidráulico do vale à retenção da água. Será possível fazer subir o nivel da água alguns decímetros, reduzir a energia do sistema e aumentar a infiltração e a recarga, sem aumentar de forma significativa a superfície inundada, devido, principalmente ao facto de o ribeiro se estar a entalhar no leito.
Instalamos algumas represas, logo que o nivel da água no ribeiro e nos seus afluentes começa a baixar de forma significativa. Construindo as represas com algum caudal residual pode-se ficar de imediato com uma noção do seu funcionamento com os materiais disponíveis. O grau de ensopamento dos solos à volta da água retida será igualmente um indicador importante para a selecção de futuros locais de instalação.
O nivel sustentado de água não será significativo, apenas se pretende instalar três ou quatro pequenas represas; duas no canal principal, com água; duas em áreas planas, já sem escoamento superficial, mas afectadas pelo canal principal. As represas do canal principal em pouco farão subir o nivel da água, mas pretende-se avaliar a sua capacidade de evitar a descida do nivel da água ao longo do Verão e a sua interferência na vegetação nos afluentes afectados e até que distância mantém vivas as ‘estacas molhadas’ criadas em viveiro e a sensibilidade destas para a plantação ao sol ou à sombra.
Numa fase mais avançada da construção da represa acima.
Aumento significativo de caudal e subida do nivel de água deverá ocorrer no próximo Outono, apenas. Nessa altura deve-se ajustar a construção, com subida ou ajuste do coroamento, adição de suportes laterais e verticais, se necessário.
Poderá fazer subir o nível de água cerca de um metro, com a criação de um corpo de água com o formato do entalhe; será uma extensão de baixa energia e acumulação de detritos e também uma área de recarga localizada do aquífero. Poderá também atrasar a diminuição do caudal ao longo da Primavera e Verão seguintes.
Durante o processo de instalação da primeira represa de água, no Ribeiro da Candeeira.
É uma represa de dimensão reduzida; não irá criar inundação das áreas adjacentes ao ribeiro, mas subir ligeiramente o nivel da água dentro do entalhe, segurando a água durante um período mais prolongado.
Imagem: Cristina Baptista.
Após ‘conclusão’ da represa. Vista frontal, na direcção da corrente.
A palavra conclusão está entre aspas devido à natureza dinâmica das represas tipo BDA - são construções por natureza temporárias e adaptáveis às condições hidrológicas do curso de água. Por isso será sempre expectável ter de haver correcções, alterações e simples manutenção das represas. Não estão verdadeiramente ‘concluídas’, mas antes ‘num estado de permanente evolução’.
Após enchimento da represa.
É notório como se passa de um ambiente de alta energia com o esoamento rápido da água e dos sedimentos para um ambiente de energia muito mais reduzido a montante da represa, favorável à infiltração de água e à deposição de detritos. É um óptimo ambiente para viveiro de inúmeros invertebrados e anfíbios que servem de suporte à avifauna do ecossistema ripícola.
Se o resultado for positivo, no ano seguinte procede-se para
II - segunda fase de instalação de represas com maior largura e com maior capacidade de retensão.
Serão instaladas principalmente na parte mais alta do fundo plano, a montante, na ‘Nave de Cima’. Avançam gradualmente para o afunilamento do fundo plano e depois para a ‘Nave de Baixo’, atingindo o lago / turfeira na extremidade nascente do vale, junto da sua desembocadura para o Vale do Rio Zêzere, a ‘Charca da Candeeira’.
Esta segunda fase vai trabalhar sobre as experiências das represas-piloto e sobre as próprias represas, com trabalhos de ampliação ou reconstrução, conforme as suas reacções à água.
Pretende-se, nesta segunda fase, a obtenção de um canal de escoamento mais alargado, com o estabelecimento de uma zona ripícola ‘de facto’. Será o início da plantação com as espécies ripícolas nas localizações definitivas (Salix e Alnus - salgueiros e amieiros).
O nivel da água nesta fase corresponde aproximadamente ao leito onde se iniciou o entalhamente na pré-actualidade - na passagem do ribeiro anastomosado para a actual linha de água de canal simples. Temos esperança que o actual leito menor / leito de Verão se venha gradualmente a assorear, de modo que a subida das represas se faça a partir de um nivel mais alto (correspondente ao actual nivel 1, na figura acima).
III - Consideramos a 3ª fase quando o ribeiro tiver mais deposição que erosão e energia ≈ zero.
A terceira fase não será tão definida, tão específica como as duas anteriores. Todo o actual leito de cheia estará submerso de forma permanente com a retensão das águas do Outono e Inverno e, mesmo durante o Verão, o ribeiro irá formar dois lagos compridos em vez do actual canal de escoamento quase seco. As águas freáticas terão uma resposta inequívoca à existência permanente de água em superfície e os prados laterais ao actual ribeiro estarão submersos ou quase submersos durante uma grande parte do ano.
Com o alagamento permanente do actual leito de cheia e o alargamento da secção molhada o regime energético sofrerá alterações no sentido do actual canal de escoamento se assorear inicialmente com detritos mais grosseiros, passando progressivamente a mais finos.
Não fará sentido repartir os trabalhos mais avançados em fases, em virtude de não serem mais, faseados.
A ampliação progressiva da largura, da complexidade e da capacidade de retensão de água de todo o sistema é uma progressão dinâmica e adaptável. O próprio fundo do vale impõe limites à dimensão do sistema hidrico. Não haverá interesse ecológico em encher muito o fundo plano, no entanto será benéfico que se consiga uma ligação completa entre as águas superficiais até a actual ‘Charca da Candeeira’ e as águas freáticas. A lomba central do fundo do vale ficará sempre a separar duas áreas húmidas, e muitos relevos ficarão sempre emersos de um lado e de outro.
O que se pretende não é o alagamento completo do fundo do vale, ou seja, a criação de dois lagos separados por uma lomba; pretende-se criar uma grande quantidade de pequenos corpos de água interligados por passagens vivas.
O clima está a tornar-se prograssivamente mais seco e nada se pode fazer para aumentar a precipitação. Mas é possível atrasar o escoamento das águas precipitadas sobre a bacia-vertente do Ribeiro da Candeeira.
Pretende-se, a médio-prazo, tirar o ribeiro do seu actual leito entalhado, deixando a parte mais funda do canal assorear-se com detritos, reduzir a energia de escoamento do ribeiro e permitir uma recarga eficaz do aquífero. Com as represas fazer subir o nivel da água, de modo que o nivel mais baixo no Verão corresponda ao actual nivel de cheia canalizada no Inverno; durante períodos de chuva intensa, as represas farão o seu papel de reter a água numa superfície muito mais ampla do que a que actualmente é afectada pelas cheias.
Como já foi aqui referido, e muito mais explicitamente na bibliografia técnica, as represas funcionam pela quantidade e não pela qualidade. Significa isto, na prática, que não é pela qualidade ‘muito boa’ de poucas represas que o resultado final será conseguido. Será possível obter uma resposta favorável na hidrologia do vale, pela multitude de represas; cada uma contribuirá um pouco para o resultado. Independente da qualidade individual de construção, a multiplicação de represas, e a desmultiplicação do efeito ao longo de muitas represas. No seu conjunto deverão conseguir segurar uma quantidade de água que permita recarregar o aquífero e evitar a drenagem quase imediata da chuvas.
Com a criação do sistema húmido no fundo do vale, as árvores adaptadas ao ambiente húmido serão a base do ecossistema ripícola com a sua comunidade própria de plantas e animais.
