Como terá sido o Vale da Candeeira ?
há 16.000 anos…
Sabemos que houve glaciares na Serra da Estrela.
Também houve em outras serras em Portugal - na Serra do Gerês; há vestígios de um fenómeno semelhante, a nivação (ver a diferença entre glaciação e nivação aqui), nas Serras do Larouco, da Cabreira, do Marão e na Serra da Freita.
Os vestígios da erosão e dos depósitos criados pelo gelo são muito mais nítidos e evidenciam uma glaciação mais intensa e duradoura na Serra da Estrela do que na Serra do Gerês.
Os vestígios da acção do gelo apresentam grande heterogenidade. Há formas bem conservadas a pouca distância de formas bastante degradadas.
A interpretação mais habitual, por exemplo nos Pirenéus, tem sido da construção dos relevos em várias fases de evolução, a chamada morfogénese policíclica: as formas mais degradadas terão sido formadas em episódios glaciários mais antigos, e as formas mais bem conservadas, terão sido formadas por eventos mais recentes.
Para esta interpretação ser eficaz, há que estar atento a esse estado de conservação das formas aquando da sua observação.
Aparentemente os glaciares da face oriental da Serra (e que preencheram os vales de Alforfa, do Zêzere, da Candeeira e dos Covões) estiveram na sua fase de máximo avanço numa fase bastante antiga. Provavelmente a glaciação principal da Serra da Estrela, na última idade do gelo foi contemporânea com o avanço máximo dos glaciares dos Pirenéus e de outras montanhas na Península Ibérica.
A fase de maior arrefecimento que aconteceu no período entre 60.000 e 70.000 anos terá sido o período mais provável para o máximo avanço dos glaciares na face ocidental da Serra (virados para o Atlântico/Caramulo - Vales da Loriga, Lagoa Comprida / Caniça e Vale do Sabugueiro / Covão do Urso). Explica o melhor estado de conservação dos vestígios glaciários do sector ocidental da Serra.
Dados recentes corroboram a hipótese da glaciação mais intensa e com o maior volume de gelo nos vales orientais da Serra ter sido anterior à última idade do gelo, há mais de 140.000 anos, portanto. A penúltima idade do gelo (denominada ‘Glaciação de Riss’) teve um período final de arrefecimento de duração aproximada de 50.000 anos durante os quais as temperaturas na Antárctida eram semelhantes aos períodos mais frios da última glaciação.
Referência sobre a glaciação do Riss:
Parrenin, F., et al., (2007): The EDC3 chronology for the EPICA dome C ice core, Climate of the Past 3(3):485-497
Apenas estudos mais aprofundados e abrangentes na Serra da Estrela e eventualmente também na Serra do Gerês poderão esclarecer a posição cronológica das extensões máximas do gelo nestas montanhas.

O Vale da Candeeira já esteve completamente preenchido por uma língua de gelo. Provavelmente até há 140.000 anos…
Foi um tributário do glaciar do Vale do Zêzere que preencheu quase por completo o vale: a encosta Norte, mais alta, terá dominado a superfície do gelo, como uma colina arredondada de 60 metros a separar os glaciares da Candeeira e de Covões. Actualmente essa colina chama-se ‘Piornal’.
Na fase de maior extensão do gelo, este terá coberto por completo toda a extensão desde o Piornal até o Cântaro Magro e daí definiu-se pela moreia lateral, ainda hoje visível a emoldurar o vale por cima do Covão de Ametade, passando por baixo dos Poios Brancos e, mais à frente, terá tentado passar a cumeada pela Lagoa Seca, sem o conseguir, tendo seguido o vale do Zêzere para Norte até chegar quase onde está hoje a vila de Manteigas.
Este avanço máximo deste grande glaciar deixou as encostas semeadas de detritos que arrancava das cabeceiras dos vales e dos circos glaciários. Detritos de todos os tamanhos e feitios, tudo era transportado sem qualquer selectividade pelo fundo do glaciar, cobrindo a sua superfície na sua parte mais baixa e nas suas margens. A estas acumulações de detritos dá-se genericamente a designação de moreia. (moreia lateral, m. de fundo, m. frontal, consoante a posição dos detritos relativamente à língua de gelo). Assim se criou a moreia lateral que encosta à Nave de Santo António, e na verdade, todas as moreias da Serra.
Após este preenchimento máximo dos vales da Candeeira e do Zêzere os glaciares recuaram.
A avaliar pelo registo de temperaturas do período quente entre a penúltima e a última idade do gelo, tanto na Antárctida como na Groenlândia, foi um período com temperaturas que atigiram valores médios 4 a 5°C mais quentes que na actualidade.
O gelo terá desaparecido por completo da Serra da Estrela, e assim desapareceu da maior parte das montanhas do Mundo - apenas ficaram nos cumes mais altos das cordilheiras da Ásia, no Norte da América do Norte e pontualmente nos vulcões dos Andes. Até o gelo continental da Groenlândia tera ficado significativamente reduzido e na Antárctida houve também uma diminuição do volume, sem ser aparente uma alteração dos contornos do gelo.
Na imagem que estamos a criar do Vale da Candeeira teremos que acrescentar mais uns arcos morénicos que nos deixam adivinhar alguns avanços do gelo, já durante a última idade do gelo.
Ao contrário das moreias muito mais desgastadas pelo tempo, como referido, provavelmente despositadas numa época de gelo mais antiga, alguns destes arcos morénicos estão bastante mais bem definidos. Alguns serão provavelmente da fase fria de 60.000 a 70.000 anos, outros quase sempre em posição interior serão testemunhos do avanço máximo durante a última fase fria que culminou há 30.000 até há 22.000 anos. É esse gelo que, agora em fase recessiva, ainda preenche a encosta, na nossa fotografia.
Ainda se vê o gelo a preencher a cabeceira ampla do vale, e por detrás adivinha-se o manto branco da cúpula que cobre a ‘torre’. No Cantâro Gordo cada reentrância está preenchida com uma mistura de neve e geada, está cheio de linhas brancas; um manto de gelo agarra-se à sua face sombria vertical. Na parte de baixo dessa massa de gelo está a aparecer uma lagoa de água leitosa, azul clara.
A encosta desde a actual Lagoa dos Cântaros até as turfeiras da Clareza (erradamente conhecido por ‘Salgadeiras’…) é um escarpado profundo. Vem desde a crista que liga o Cântaro Gordo ao Planalto Central. Nesta época, essa crista ainda estava coberta de gelo e terá mesmo sido dos últimos sítios da Serra a ficar descoberto. É a separação do gelo da calote do planalto em duas correntes de gelo, uma para o Covão Cimeiro (Glaciar de Albergaria/Zêzere) outra para a Candeeira. No contacto entre o gelo ‘frio’ agarrado à encosta Norte do Cântaro e o gelo ‘quente’ do glaciar faz-se uma zona de contacto, densamente recortado e sulcado e com um declive bastante acentuado.
Para a distinção entre ‘gelo frio’ e ‘gelo quente’ (que aparentemente pode parecer contraditório), ver aqui.
A cabeceira do vale é ampla e quase se divide em duas, separadas por uma crista (Poio dos Cães / Lagoa do Pachão). A cabeceira Norte - do lado direito, na nossa fotografia imaginária - está cheia de gelo sulcado em escadaria a descer a encosta, porém sem chegar ao fundo do vale. Só a língua do lado Sul da crista ainda chega ao fundo do vale, na parte inferior mais lisa e mais suja de pedras, terra e pó.
O Vale da Candeeira já se identifica pelas suas encostas, sem gelo mas semeadas de pedregulhos dispersos, restos das moreias laterais da mais antiga glaciação completa, desfeitas pela gravidade e alteração superficial do granito. Logo por baixo, uma série de arcos morénicos escuros de cristas bem definidas. Ao fundo, a língua de gelo quase escondida debaixo da cobertura de pedras e camadas de pó fino ainda deixa ver, na sua extremidade, uns rasgos com gelo azul onde uma torrente de água jorra pela sua base, do lado mais recuado. Outra parte do gelo chega mesmo até junto da água do lago que com a sua cor branco-azulado preenche metade do fundo do vale.
O rio que alimenta o lago é um canelado disperso de canais por entre a gravilha largada pelo gelo. A carga de detrítos em cima e na frente do gelo é grande. Aqui e além ficam pedras de vários metros - onde o gelo as larga, assim ficam. Os pedregulhos mais pequenos vão sendo acomodados pela torrente, que leva as areias e as argilas - daí a coloração esbranquiçada da água nos lagos glaciários: argilas em suspensão. A torrente alimenta uma série de lagoas no fundo do vale, que se escoam por um canal lateral profundo entre as rochas.
Todos os materiais que na actualidade fazem do fundo do vale uma superfície tão plana, estavam nessa época a começar a ser depositados. O fundo do vale ainda não era plano, tinha o ‘tipico perfil transversal em U’.
Na nossa fotografia imaginária temos de retirar estes ca. 10 metros de sedimentos do fundo e dar-lhe o perfil arredondado que o gelo lhe deixou.
Do lado norte do vale, uma encosta com 300 metros de altura, escarpada, mas com um relevo mais suave no seu topo, onde algumas manchas de musgos e ervas dão um ar florido à encosta.
Mais abaixo essa encosta torna-se mais escarpada e as rochas polidas não têm qualquer vegetação.
Do lado sul do vale, a encosta não é tão alta e terá sido completamete coberta pelo gelo. Há muito tempo, evidenciado por um arco morénico precisamente a marcar o topo da encosta. Foi uma moreia central, que surgiu no contacto entre duas correntes de gelo, quando o Vale da Candeeira esteve totalmente preenchido assim como o seu vale vizinho (o Vale das Candeeirinhas, logo a sul).
Moreia lateral recente e em perfeito estado de conservação.
Imagem: Peter Prokosch.
Nesta última glaciação o gelo chegou quase até junto do topo da encosta, mas só quase. Vê-se muito nitidamente a moreia do avanço máximo mais recente, umas dezenas de metros abaixo do topo da encosta.
É um dos ‘contactos peculiares’ onde quase se tocam duas formas com idades diferentes em quase 100.000 anos, ambas criadas por igual processo: uma antiga, estragada pelo tempo, o abatimento e reorganização dos blocos e pela vegetação que entretanto lá esteve; o segundo arco morénico, à altura da nossa fotografia, tem apenas 5.000 anos e está ainda num estado de conservação como nós humanos, ainda nunca vimos em Portugal: mantém ainda uma crista muito definida, as suas vertentes ainda muito rectilíneas e (quase) todos os materiais largados pelo gelo no seu interior.
As reentrâncias do terreno no topo das encostas, principalmene nos sítios onde as formas do relevo dão um pouco de sombra, estão sempre cobertas de neve. Acontece mais na encosta Sul - virada a Norte, e logo mais sombria.
No fundo da neve vê-se quase sempre uma linha de água a sair…
A ausência de vegetação ainda mantém todas as formas glaciárias muito evidentes, ao mesmo tempo que dá ‘um aspecto lunar’ à paisagem.
A vegetação normalmente é rápida a colonizar as paisagens quando os gelos se fundem e desaparecem dos vales e dos planaltos. Junto da desembocadura do vale, onde acaba a Candeeira e começa o Vale do Rio Zêzere, podemos encontrar alguns vidoeiros - é a espécie pioneira (=primeira espécie a crescer em terrenos sem plantas/árvores). É o único acesso de terras mais baixas, com clima menos agreste de onde as plantas podem colonizar os vales mais altos da Serra.
A planta mais característica dos primeiros milénios na Estrela, de acordo com as sondagens polínicas, eram herbáceas do género Artemisia.
Vidoeiro.
Imagem: wikipedia.org
Artemisia vulgaris. Pormenor da folha e aspecto geral.
Imagem: wikipedia.org
Nesta época ainda existiam todos os grandes herbívoros da ‘Europa selvagem’. Sem fronteiras e quase sem pessoas as únicas barreiras à expansão desses animais eram as barreiras naturais. Pela mesma razão que na actualidade muitas plantas e animais não passam de eco-sistema, nesta altura remota o mesmo devia acontecer.
O Sul da Europa, apesar de muito mais frio que agora, continuava a ser ‘o menos frio’. As condições ambientais na Península Ibérica durante as fases mais frias da última idade do gelo terão sido comparáveis às que existem presentemente no Sul da Noruega e tal como na actualidade, existe um limite biogeográfico nos Pirenéus e Alpes, onde se faz a separação entre o ‘mundo temperado’ e o ‘mundo mediterrânico’. Durante os períodos de maior arrefecimento, terá existido aqui o limite entre o ‘mundo temperado’ e o ‘mundo gelado’.
Muitos dos herbívoros que associamos à ‘Idade do Gelo’ (Mamute, Rinoceronte-lanudo, Saiga, Leão-das-cavernas, Hiena-das-cavernas, entre outros) são animais que viviam no semi-deserto próximo das calotes de gelo continentais, a tundra. Dos mencionados, a hiena foi identificada na caverna da Furninha, Peniche. Mas este tipo de animais era especializado em ambientes de estepes/pradarias, abertos, frios, secos, sem árvores e com predominância de ervas e líquens.
Paisagen de floresta temperada da Escócia. Imagem: National Geographic.
No sopé das montanhas e no interior e Sul da Península Ibérica - durante os períodos mais frios da Idade do Gelo - predominava a floresta mista, com pinheiro silvestre (ou pinheiro de casca cor-de-rosa) e carvalhos.
Na Península Ibérica o ambiente era parecido com o que actualmente encontramos na Noruega e centro/Sul da Suécia: a Norte, floresta de pinheiros, misturado com folhosas, principalmente carvalhos, que ganham alguma predominância no Sul. Nos montes floresta de vidoeiros e, em altitude, glaciares.
É assim agora no Sul da Escandinávia, era assim, na Península Ibérica.
Nessas florestas viviam, para além dos herbívoros da actualidade e em maior quantidade, o veado-gigante, rinoceronte-lanudo, uro (ou boi-selvagem), bisonte, cabra-montês e castor. Entre os predadores - à excepção da raposa e da lontra, já todos foram extintos ou quase - mencionamos a hiena, leão europeu, leopardo, leopardo-das-neves, lobo, lince e urso.
No final da Idade do Gelo, o Mundo teria sido um lugar muito interessante.
Era uma época de grandes e rápidas mudanças, ditadas por alterações do clima, que por sua vez forçavam a Natureza a adaptar-se de maneira forçada e acelerada às alterações daí resultantes: subida do nível do mar e inundação de vastas áreas costeiras, chegou a atingir os 15 mm por ano! Fusão acelerada das calotes continentais de gelo, formando grandes rios e lagos cuja água é segurada pelo próprio gelo e ao regredir em determinado momento deixa a água toda do lago vasar para o mar - são enxurradas glaciárias de proporções continentais, com as designações técnicas ‘Glacial Lake Outburst Flood’ (no caso de ser de um lago sub-aéreo), ou o termo islandês ‘jökulhlaup’ (nos casos menos dramáticos, mas mais frequentes na actualidade, quando a água tem origem no esvaziamento de lagos subglaciários).
Para entender a dimensão destes eventos, temos de perspectivar o tamanho dos gelos continentais, o tamanho enorme desses lagos e observar os estragos causados pela sua drenagem repentina, ao fim de milhares de anos, ainda observáveis!
Fizémos ‘um instantâneo’ do Vale da Candeeira numa época de grandes mudanças globais. A simultaneidade dos eventos e da localização de pormenores da paisagem é improvável, mas possível. Espelha uma série de situações significativas para a evolução do vale e da Serra e que se verificaram em intervalos próximos, como se fossem simultâneos. Podem ter sido, ou não.
Tentaremos recriar a imagem imaginada como imagem real - ou com uma maqueta/modelo miniaturizado real ou em grafismo computadorizado a 3D.
Será fotografado e a imagem correspondente aqui junta!