Como tera sido o Vale da Candeeira

há 8.500 anos?

Imaginemos uma floresta.

Não uma floresta qualquer - uma floresta com uma variedade visual (e ecológica) mais semelhante à Amazónia do que associamos à ‘floresta europeia’. Há algumas árvores de dimensões invulgares, gigantes de 40 ou 50 metros que enchem a paisagem com as suas copas de largura extraordinária, em vários ‘andares’ e troncos contorcidos e grossos, completamente cobertos por musgos, trepadeiras e líquenes. Entre estes gigantes há outras árvores, também grandes, mas de dimensões mais modestas, ‘normais’ aos olhos de um observador moderno.

Em alguns sítios vemos clareiras onde os restos de algum gigante se dissolve sob um manto verde de musgos e multicolorido de fungos e cogumelos.

Carvalho em Ivenack, Baviera, Alemanha. Idade provável, ~800 anos.

Imagem de Heiko Koehrer-Wagner.

Sem caminhos traçados por pessoas, há trilhos abertos pelos animais, que aqui abundam. Principalmente os grandes herbívoros mantêm um equilíbrio na vegetação, que só raramente se torna impenetrável; os cavalos comem algumas ervas e arbustos e de forma diferente dos veados e dos bois - cada espécie dos grandes herbívoros tem uma preferência alimentar diferente e, no seu conjunto, todos manêm um sub-bosque aberto e muito diversificado.

O ar cheio de pássaros de tantas espécies que é impossível distinguir o canto deles todos - tordos, felosas, chapins, gaios… atentamente vigiados por aves de rapina - falcões, açores, águias. Usam as poucas rochas que não estão cobertas por árvores, ou fazem os seus ninhos nos ramos mais altos dos gigantes verdes.

Por baixo, no fundo da mata, há sítios onde nascentes de água estão cobertas por arbustos floridos, outros mais soalheiros e secos, onde cavalos, bisontes e outros grandes mamíferos tomam ‘banhos de pó’ para aliviar a comichão. Estes animais mantêm o fundo da floresta claro e arejado. Aberto suficiente para dificultar a tarefa da caça aos predadores. A grande diversidade herbívoros - desde lebres, esquilos e corços a bisontes e bois - suporta uma grande diversidade de cadeias alimentares.

Não são árvores da Amazónia, são ‘vulgares’ carvalhos, mas de formas e dimensões invulgares: as suas raízes parecem saír do solo, de um pé de muitos metros de largura, estreitando-se irregularmente até chegar ao tronco, uma coluna viva, escura, contorcida que se perde em ramificações em ângulos aleatórios. Cada árvore é tão antiga que quase cria um ecossistema: as concavidades dos troncos juntam água e criam vida; os troncos e ramos completamente cobertos por musgos, e líquenes que fazem tufos e pendentes, de tal forma densa que a casca da árvore é um interface invisível e coberto entre a árvore e todos os seres vivos que a cobrem. Tal como nas raízes, os fungos e os líquenes ajudam as árvores a absorver nutrientes e luz solar.

Inúmeras espécies de ratos, esquilos e outros pequenos herbívoros vivem no mundo das copas destes gigantes verdes - até predadores aqui fazem a sua vida: martas, ginetas e outros - são animais especializados na ‘caça arbórea’.

As copas dos carvalhos gigantes são tão grandes, diversas e abertas, que até as aves de rapina encontram aqui o seu alimento e poiso para nidificar: desde as pequenas corujas às maiores águias, os troncos velhos e ôcos e os ramos altos e grossos suportam uma diversidade de vida que, em tempos mais recentes, deixou de existir.

Vamos agora usar o contorno bem conhecido do Vale da Candeeira, alongado, de encostas inclinadas, com uma lagoa numa ponta e a silhueta escura e arredondada, característica do ‘cântaro gordo’ na outra ponta…

Vamos sobrepôr a imagem da floresta à grande concavidade do Vale da Candeeira.

Sobreelevamos a superfície para que cubra a maioria das rochas, apenas as maiores ficarão salientes; os escarpados com arbustos a tentar agarrar-se às fendas entre as rochas, negras de líquenes.

Nos pontos mais altos da encosta, a observação mais atenta evidencia uma comunidade diferente - nas encostas mais altas da Serra predomina o vidoeiro, com a sua casca branca e folhas leves e finas.

No planalto central da Serra vamos encontrar uma paisagem determinada pelo substrato: nos locais mais húmidos encontramos muitas pequenas lagoas, prados de cervunal e turfeiras, rodeadas por vidoeiros, que encantam com as suas folhas leves e casca branca, como os encontramos agora no Covão de Ametade… ocasinalmente com um amieiro ou uns salgueiros a crescer junto ou dentro da água. Nos terrenos secos entre as zonas húmidas reina o carvalho. Nas áreas mais altas da Serra, até um pouco acima dos 1800 metros de altitude, a floresta é menos diversificada (predomina o carvalho, sem a imponência das baixas altitudes, com a companhia de aveleiras e sanguinhos).

Nas encostas do vale, quanto mais descemos mais a imponência das árvores se torna evidente: à altitude do fundo do Vale da Candeeira, é a altitude onde o carvalho negral atinge o seu auge - árvores que parecem eternas; gigantes com 30 ou mais metros de altura.

A maior altitude, algumas espécies não migraram, pelo que a diversidade de espécies é maior no fundo das encostas do que no topo e no planalto.

É portanto nas encostas do fundo dos vales que circundam o Planalto Central que vamos encontrar a maior diversidade da floresta de montanha - no Covão do Ferro (Unhais), Covão do Urso (Sabugueiro), Vale do Rossim e Penhas Douradas, bem como todo o planalto a nascente do Vale do Rio Zêzere, conhecido localmente como ‘Serra de Baixo’, entre as Penhas da Saúde e o Poço do Inferno.

Neste intervalo de tempo toda a Serra e vales e planícies circundantes terão estado cobertos por uma imensa área de floresta: a menores altitudes com carvalhos mediterrânicos (sobreiros, azinheiras e toda a comunidade ecológica que acompanha esse ecossistema).

Nas serras do Noroeste da Península Ibérica, e para sul até o Planalto da Beira Alta e a Serra da Estrela, onde as elevações criam um ambiente mais húmido, predominavam os carvalhos de folhagem caduca sobre os carvalhos de folhagem perene (ou ‘mediterrânicos’).

De acordo com os estudos polínicos, há um limiar ecológico próximo dos 1400 metros (altitude máxima do pinheiro bravo, Pinus pinaster, da oliveira, Olea europaea; altitude mínima do cervunal com Nardus stricta) coincidente com a altitude do óptimo do carvalho negral (Quercus pyrenaica).

O carvalho negral terá colonizado a Serra toda até perto da sua altitude máxima, porém com menos vitalidade das árvores e menos diversidade de espécies a maiores altitudes, mas criando ainda um estrato arbóreo denso acima de 1750 m, árvores mais dispersas e prostradas pelo ambiente agreste acima de 1800 metros.

Há 9.000 anos a diversidade da Natureza na Serra da Estrela atinge um nível nunca visto: a grande variedade de formas - mais inclinado, menos inclinado; virado para a sombra e para o sol, em terreno húmido e em terreno seco - parece que a vida brota do chão, em todo lado! Não há uma fenda nas rochas que não tenha verde do musgo e uma planta a crescer da rocha; freixos e carvalhos gigantes com troncos repletos de musgos e pendentes de líquenes, são a casa de esquilos, corujas e pica-páus. As árvores grandes ladeadas por teixos, azevinhos, aveleiras e até uma ocasional cerejeira e uma clareira com fetos ou relva onde pasta uma família de veados.

Há várias razões para a Natureza ter atingido um auge, nesta altura.

Houve algumas condicionantes, de origem natural, que impediram que fosse atingido mais cedo, entre os quais, os períodos frios do final da última época do gelo, que se mantiveram até há 11.700 anos.

A condicionante para esta ‘auge’ não se ter mantido por mais tempo, depois de há 8.000 anos, é a interferência humana.

As primeiras alterações ecológicas na Serra da Estrela, resultantes da interferência humana, fazem-se sentir há 7.635 anos 14-C (~8400 anos de calendário/calibrados antes do presente = antes de 1950). São alterações inicialmente muito ligeiras que se tornam gradualmente mais abrangentes e intensas. (explicação da datação por carbono-14 e a calibragem da escala de tempo - aqui)

Os critérios para a definição dos factores determinantes para a expansão e para o declínio da floresta natural da Serra da Estrela estão discutidos nesta página. “O” auge foi portanto atingido nesse intervalo de tempo, entre os 9.000 e os 8.400 anos passados. Por essa razão escolhemos ‘o momento’ há 8.500 anos, como o ponto na escala temporal para localizar a imagem ideal, da maior diversidade ambiental, no Vale da Candeeira.

Há 8.000 anos este fundo de vale era diferente.

Completamente diferente!

As encostas cobertas da folhagem de árvores de todas as espécies e de todos os tamanhos chegavam ao fundo do vale onde a paisagem mudava de um verde para outro verde. Terá sido uma extensa superfície de pequenas lagoas criadas pelos castores, no seu trabalho incessante de construír e reconstruír as suas represas.

Aqui o carvalho dá o lugar ao salgueiro, como árvore dominante. Nas pequenas elevações, nos sítios onde a água não satura o solo em permanência, por certo estará um carvalho. Onde a humidade no solo é a regra, a árvore mais bem adaptada é o freixo. Nos sítios onde a água cobre o chão e satura o solo de água durante quase todo o ano, a escolha da Natureza vai para o amieiro. Por entre este mosaico de árvores, as terras que cobrem e descobrem serão o local de crescimento ideal do salgueiro. Por todo o fundo do vale, à volta do lago e pelas linhas de água que descem as encostas, os salgueiros são o ‘marcador’ da humidade.

Como a Europa é um continente domesticado há muitos milhares de anos, é difícil ter-se a noção de como ficam grandes as árvores nas florestas da Europa - se as deixássemos crescer…

Imagem: Aljos Farjon/Ancient Tree Inventory, Woodland Trust — ati.woodlandtrust.org.uk

O fundo do Vale da Candeeira é um exemplo de todas as concavidades da Serra: qualquer sítio, onde as águas fiquem acumuladas por mais tempo, a Natureza trata de intensificar esse processo. Assim, as águas das chuvas e da fusão das neves fica armazenada ao longo do ano, servindo de recarga para as nascentes e para a vida que depende da água corrente (rãs, relas, sapos, salamandras e inúmeros insectos põem os seus ovos dentro de água).

As concavidades, por serem mais húmidas, são o local ideal para o aparecimento de salgueiros, sabugueiros e amieiros. São árvores de crescimento rápido e as principais fontes de matéria prima para a contrução das represas de água criadas pelos castores. Com as suas represas aumentam o volume de água, o que permite encher as concavidades da paisagem completamente de áreas pantanosas, berçário de uma enorme densidade de insectos e outros invertebrados aquáticos (mosquitos, libelinhas, tira-olhos, p. ex.) que servem de sustento para o riquíssimo ecossistema ripícola, onde inúmeras pequenas aves se alimentam dos insectos e anfíbios.

Hoje, no fundo da Candeeira, temos uma superfície plana, em alguns sítios ainda coberta por tufos de erva e cervunal; está a ser invadida pelas giestas que dentro de poucos anos terão fechado totalmente o fundo. Na actualidade, não cresce, em todo o fundo do vale, uma única árvore!

Apenas é atravessado por um sulco em cujo fundo corre uma linha de água, até Julho ou Agosto, quando, em muitos anos, fica uma grinalda de poças de água.

Imagem: wallpaperflare.com

O lago foi um corpo de água permanente até a erosão desmesurada, fruto da desflorestação, ter preenchido o fundo do vale de sedimentos. Há 8.000 anos havia muito menos sedimentos, a superfície topográfica estaria mais baixa (ao contrário das encostas, onde a superfície terá estado mais elevada): o vale terá tido ainda o típico perfil transversal arredondado (“fundo do vale em ‘U’ “), reminescente da presença da lingua de gelo - o fundo plano actual é o resultado da erosão recente, nas encostas, durante e após a destruição da floresta da Serra, nos últimos 800 a 300 anos.

Haveria mais água retida nos ecossistemas da Serra: todo o fundo dos vales eram ecossistemas ripícolas, onde a água superficial se ligava com a água freática num circuito dinâmico e versátil de circulação anastomosada (=sem canal definido), que nunca secava, nem nos Verões mais secos. Nas margens havia tabuas, e sobre a água, nenúfares…