As gravuras rupestres no Vale do Côa indicam-nos a presença de humanos há mais de 25 mil anos, numa parte da Península Ibérica onde as condições de vida terão sido bastante inóspitas. Sabe-se também que o Homem de Neanderthal terá vivido lado-a-lado com o Homem Moderno, no continente Euroasiático e os seus vestígios mais recentes são precisamente da Península Ibérica.

Mais sobre a colonização precoce da Península Ibérica por Hominídeos aqui:

Alcaraz-Castaño, M., et al. (2021): First modern human settlement recorded in the Iberian hinterland occurred during Heinrich Stadial 2 within harsh environmental conditions. Nature (11) 15161, 1-24. Scientific Reports.

Não há, por isso, qualquer dúvida sobre a presença de humanos na Serra da Estrela, antes, durante e depois da última glaciação. Por outro lado, as análises ao pólen das trufeiras da Serra, indicam que não houve interferência humana nos ecossistemas da Serra, senão a partir de há 8.400 anos BP. A interferência humana apenas se torna predominante a partir de há 6.400 anos BP.

Nos depósitos mais antigos das turfeiras, as oscilações da composição de pólens é coincidente no tempo, entre os vários locais amostrados: as alterações nos ecossistemas da Serra explicam-se por oscilações climáticas - são simultâneas por o clima afectar toda a Serra, ao mesmo tempo.

Já nos depósitos mais recentes que 6.400 anos, as perturbações no ecossistema são geralmente assíncronas: as alterações indiciadoras de abertura de clareiras, pastoreio por herbívoros e aumento de plantas cultivadas (ex. cereáis, oliveira) sugere a gestão humana das florestas, diferenciada de local para local, de um vale para outro…

Vamos imaginar o aspecto do Vale da Candeeira, a um tempo em que a Natureza prevalecia e geria a paisagem na Serra da Estrela e no interior da Península Ibérica.

Floresta mista de carvalhos - terá sido assim a paisagem em (muito antes de haver-)Portugal.

Imagem de: Jaime Dantas/Unsplash (Stock Foto do serviço de alojamento da página na internet)

Como já foi aqui referido em várias páginas, a vegetação que terá predominado em Portugal e em toda a Península Ibérica era a floresta de carvalhos. A Europa toda terá estado coberta de floresta antes da interferência humana

  • a floresta boreal na Escandinávia,

  • a floresta mista de carvalhos caducifólios na Europa ocidental, central e oriental,

  • a floresta de carvalhos de folhagem permante no sul da Europa/região mediterrânica.

Apenas no extremo sueste da Europa, devido à insuficiência de precipitação, terá havido uma paisagem mais aberta, a transitar para as estepes do interior do continente Euro-asiático.

A ‘floresta de carvalhos de folhagem permante no sul da Europa/região mediterrânica’ é dominada pelo sobreiro e a azinheira, acompanhados de teixos, aroeiras, medronheiros e zambujeiros, no sub-bosque.

Se o sobreiro não for podado para incentivar o crescimento horizontal dos troncos (para facilitar a apanha da cortiça) o seu crescimento tende para o vertical, tal como os outros carvalhos. As árvores são grandes, mas a floresta é aberta, com espaço para o sub-bosque e para o estrato arbustivo. Os grandes herbívoros mantêm o equilíbrio de crescimento entre as espécies.

A ‘floresta de carvalhos na Europa central’ é dominado essencialmente pelo carvalho roble ou outras espécies regionais de carvalhos caducifólios. Existiu por quase toda a Europa até o Rio Volga e a Ásia-menor. É uma árvore grande, de crescimento lento, que perde as folhas no Outono. E uma espécie de floresta que, pela sua natureza aberta e arejada, facilita a co-dominância com outras espécies, consoante as tipicidades do solo e do microclima: faz povoamentos mistos com freixos, faias ou pinheiros, consoante o ambiente seja mais húmido ou mais seco.

Os estudos dos pólens antigos das turfeiras da Serra da Estrela são a fonte de informação mais importante para o nosso conhecimento sobre a vegetação que houve na Serra, como as comunidades vegetais reagem perante interferências e sobre como poderá, ou ‘deverá’ ser a vegetação, na Serra, no futuro.

Antes de a influência do Homem se fazer sentir na Serra da Estrela, as florestas eram sensíveis às oscilações do clima. Sabemos, através das prospecções feitas nas calotes de gelo continental da Groenlândia e da Antarctida, com bastante precisão, como variou a temperatura global e o clima. (Mais pormenores, ver aqui).

Após o rápido aquecimento no final do Dryas Recente começa o pós-glaciário, ou ‘Holocénico’. As temperaturas estabilizaram temporariamente; o clima tornou-se mais húmido. Os niveis dos lagos subiram e as areias brancas e finas, resultado da lavagem das rochas polidas pelos glaciares, foram substituidas por argilas negras de detritos orgânicos. Os sedimentos dos lagos da Serra testemunham a passagem do deserto polar para a floresta temperada.

A oscilação climática foi rápida. A resposta da vegetação não tardou.

Porém, a paisagem era desértica e, para as árvores da floresta poderem crescer era necessária a formação do substrato de crescimento: o solo. Espontâneamente demora umas centenas de anos a formar o ecossistema florestal.

O período inicial de algumas centenas anos de clima ameno e húmido, é um período em que as espécies pioneiras (vidoeiro e salgueiro) iniciam o processo de formação de solos, mas acabam por ser substituídas pelas espécies florestais.

A este período seguiu-se um período mais quente e seco. É conhecido como o ‘Óptimo Climático do Holocénico’. As temperaturas chegam a atingir valores médios ligeiramente superiores às da actualidade, o nivel do mar chegou cerca de três metros acima do nivel actual, a calota de gelo das montanhas do centro da Noruega desapareceu, tal com os gelos no vulcão Kilimanjaro, no Quénia. (são dois exemplos de glaciares conhecidos, mas a tendência foi global).

Na Serra da Estrela, as comunidades vegetais adaptaram-se: Este período durou quase 2000 anos (entre 10.650 e 8.600 anos BP atrás). A produção de pólen dos carvalhos aumentou, nas altitudes mais baixas (<1600m). Nas altitudes mais elevadas da Serra, as árvores mais sensíveis ao calor e à secura, expandiram-se, mas com dificuldade, durante o período quente e seco.

No período estável e novamente menos quente e seco que se seguiu ao ‘Óptimo Climático’, mas antes de o Homem começar a destruír as florestas, é possível identificar o zonamento altitudinal da comunidade vegetal da Serra: o carvalho negral expandiu-se mais rapidamente em altitude, mas com decréscimo de vitalidade com aumento de altitudes acima de 1700m. O vidoeiro foi espécie pioneira após o desaparecimento dos glaciares, a altitudes até ~1500m. A sua subida pela Serra foi mais lenta do que o carvalho, no entanto não perde vitalidade com o aumento de altitude, e estabelece-se como a árvore do limite da floresta, acima de 1800m, muito dependente das condições locais de humidade no solo - apenas sobe acima dessas altitudes em locais húmidos, turfosos e junto a linhas e corpos de água.

Há uma resposta muito nítida da vegetação, durante o ‘Óptimo Climático’.

Em outras regiões montanhosas o zonamento da vegetação sobe, em reflexo do ambiente mais quente: os limites entre as várias comunidades vegetais passam a ocorrer a altitudes um pouco mais elevadas, durante estes períodos.

Na Serra da Estrela isso não se verifica, ou não transparece nos dados das turfeiras analisadas: Nos primeiros séculos após o aquecimento climático pós-Época Glaciária, o vidoeiro surge como árvores pioneira, na criação de solos. Expande-se, até ser ultrapassada pelo carvalho, que cresce melhor nas áreas onde entretanto existe solo para crescimento. A expansão da floresta é mantida pelo avanço do carvalhal durante a fase quente e seca. As outras espécies têm aparentemente mais dificuldade em alargar a sua distribuição para maiores altitudes e apenas ganham mais expressão nas turfeiras mais altas depois do culminar do período seco.

Durante o ‘Óptimo Climático’ a produção de pólen de carvalho aumenta significativamente a altitudes mais baixas, enquanto mais acima não se nota esse desequilíbrio: as outras espécies parecem manter a mesma relação de produção de pólen com o carvalho nos peíodos secos e húmidos.

Pouco depois de acabar esse período, seria interessante saber como se teria desenvolvido a floresta a maiores altitudes, na Estrela. Podia ter aumentado a densidade e até a complexidade da floresta e outras espécies podiam ter colonizado os niveis mais elevados.

Nunca o saberemos, por que entretanto as actividades humanas começaram a abrir espaço para pastoreio, inicialmente nas áreas mais elevadas, talvez por aí a floresta ser menos densa e ser mais fácil a exploração. A abertura da floresta depois fez-se sentir de baixo para cima, com derrube de floresta e queimadas, nos vales inferiores e no planalto e o empobrecimento e destruição do ecossistema todo.